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O veganismo foi minha cura?

O veganismo foi a minha cura?

Foi não: é!

Fui convidada para participar do talkshow Bem-vindos, da RTP (Rádio e Televisão de Portugal) exibido pela RTP África diariamente das 17h às 20h . Ao lado da nutricionista Euritices Fernandes, o apresentador Silvio Nascimento conduziu uma conversa sobre dois

temas caros à mim: transtornos alimentares e veganismo.


Eu entre duas pessoas incríveis: o apresentador Silvio Nascimento e a nutricionista Euritices Fernandes

Dá para imaginar a dificuldade em dar conta de todo o recado? O tempo da televisão é rápido e parece escorrer entre as mãos antes mesmo de ser possível amarrar uma experiência complexa e de vários capítulos. E eu estava ali para unir dois assuntos que não se conectam de forma óbvia e objetiva, mas que se conectaram no meu corpo : veganismo e a cura de transtornos alimentares.

Foi muito legal poder contar um pouco da minha história, mas fiquei com vontade de explicar melhor porquê eu considero que o veganismo tem sido minha cura. Como sei que infelizmente não sou a única mulher do mundo que enfrentou e enfrenta transtornos alimentares (a cura é um estado de atenção permantente), decidi escrever esse post para compartilhar com vocês coisas que queria ter dito no talkshow.

Antes de mais nada:

Veganismo = “estilo de vida que não compactua com exploração animal”, eu gosto da simplicidade dessa definição da Isabela Mascarenhas, do blog Tô Comendo. Sou vegana, me alimento sem nada de origem animal, e não uso nenhuma roupa ou artigo de origem animal, não uso cremes, cosméticos ou produtos de higiene pessoal e doméstica que tenham algum ingrediente de origem animal em sua composição ou que tenham sido testados em animais.

Transtornos alimentares: sinto que nenhuma definição dá conta da complexidade da união dessas duas palavras, mas são perturbações no comportamento alimentar que resultam em doenças mentais e físicas sérias como a anorexia e bulimia, que é o que concerne minha experiência, então sempre que eu disser “transtornos alimentares” nesse texto estou me referindo especificamente à (1) anorexia = restrição extrema na alimentação, distorção da imagem corporal, busca obsessiva por um corpo magro e cada vez mais magro e (2) bulimia = compulsões alimentares recorrentes seguidas de “métodos” de expurgação como vômitos, a distorção da imagem corporal e insatisfação constante com o corpo também é crítica aqui. Estou explicando superficialmente, com base naquilo que vivi, apenas para seguirmos conversa, ok?

Já falei sobre isso no blog e também no instagram, mas para quem está chegando agora poder se situar, eu enfrentei durante pelo menos 15 anos um quadro sério de anorexia e de bulimia nervosa.

Ao longo desses anos, tiveram fases mais críticas. Nos anos de anorexia, ouvi da minha então psiquiatra que poderia morrer a qualquer momento e que se eu não engordasse pelo menos 200 g em uma semana eu seria internada. Perdi cabelo, perdi massa óssea, unhas e perdi principalmente afeto porque, na minha opinião, uma anoréxica não recusa apenas alimentos, ela recusa receber e sentir qualquer forma de prazer e de pulsação de vida.

Quando eu tinha 24 anos, certa noite, em uma festa, desmaiei no chão da pista de dança e acordei na manhã seguinte, no hospital, com máscara de oxigênio. O médico me disse que não sabia o que eu estava fazendo para estar tão debilitada, mas, fosse o que fosse, eu precisava parar porque meu coração não aguentaria passar por aquilo mais de uma vez.

Cair na bulimia depois da anorexia não é algo raro, e aconteceu comigo. Quando eu entendi, eu voltei a comer, mas foi algo desenfreado. Parece que toda a privação de comida se reverteu numa força voraz para comer tudo o que via na minha frente. Não demorou muito tempo, comecei a vomitar. A bulimia também tem fases mais críticas e outras mais controladas, mas, ao contrário da anorexia, é um transtorno bem menos evidente. Eu passava por uma pessoa “perfeitamente normal”, mas poucas pessoas sabiam o que acontecia quando eu me levantava da mesa e ia ao banheiro, ou ainda quando eu me trancava no meu quarto durante horas e horas para “estudar”. Eu comia e vomitava incessantemente, num ciclo conhecido como “binge” e que eu chamo de descida ao inferno.

Quando eu decidi virar vegana, há pouco mais de um ano, eu já não estava nesses extremos. Estava bulímica, mas me sentindo forte para cuidar da minha alimentação e saúde. A cozinha de casa certamente foi e é um dos pilares desse processo de cura, e a cozinha virou algo tão central na minha vida que atualmente já não trabalho como atriz, mas como chef, consultora, professora e palestrante. Além da cozinha de casa, aceitar que eu precisava ser acompanhada por uma nutricionista, e não “apenas” por minha psicóloga, psiquiatra e endocrinologista, foi um passo fundamental. Eu já havia passado consulta em uma série de nutricionistas, mas nunca tinha me sentido acolhida e compreendida como fui pela nutricionista Roberta Machado. Antes de virar vegana, a Roberta me acompanhou, primeiro semanalmente, depois quinzenalmente e por fim uma vez por mês na minha recuperação. Antes de me tornar vegana, foi importante criar ferramentas, tanto na terapia quanto com a nutricionista, para lidar com a comida que eu botava no meu prato e com todas as emoções que o comer me despertavam.

Foi desse lugar da “melhor fase” da minha bulimia, por assim dizer, que passei a intuir que minha cura passava pelo veganismo. Ao longo da minha reeducação alimentar, li muitos livros sobre nutrição, saúde e alimentação. O livro “Comer para não Morrer”, do Michel Greger, me deixou cheia de vontade de testar uma alimentação sem nada de origem animal para viver com saúde e respeito ao meu corpo. Eu tinha, entretanto, muito medo de retirar alimentos do meu prato. Eu sabia que restrições não me fariam bem porque os anos de restrições severas da anorexia me levaram à um comer compulsivo desenfreado na bulimia. Não queria passar por nada que parecesse restrição, mas queria me permitir me alimentar da forma que eu acreditava que era a melhor para mim. Eu suspeitava que talvez o veganismo não fosse exatamente uma restrição por isso decidi fazer um teste de uma semana para eu ver como me sentia.

Liberdade. Liberdade imensa em pensar minha alimentação longe da lógica das calorias. Pensar no que eu colocaria no meu prato sem o queijo branco, ovo, iogurte e peixe aos quais estava habituada me deu tanto trabalho no começo que não sobrou muito espaço mental para pensar em quantas calorias eu estava consumindo. Ao final dessa primeira semana, me surpreendi com a quantidade de alimentos que havia consumido e com a beleza que é preparar meu próprio alimento do zero. Fiz meu próprio leite, meu próprio hambúrguer e me preocupei em abastecer a geladeira com fontes de proteínas vegetais (como o grão de bico, ervilha, lentilha, feijão) porque era o que mais temia ficar sem. Decidi estender esse “experimento vegano” ao perceber que minha alimentação estava sendo orientada pela lógica da inclusão e da saúde.

Sim, veganismo é inclusão e não restrição, ao contrário do que pode parecer. Restrição é dieta, e, no meu caso, sinônimo de um corpo e mente doentes. Passado um ano de veganismo, posso dizer que nunca me permiti tanto na vida. E não estou falando só de comida física, mas de tudo aquilo que nos alimenta. Me permiti experimentar integralmente outra profissão, mudar de país, reatar um namoro, me casar e dividir minha história. Me permiti ser nutrida de compaixão e reverenciar a vida, toda a forma de vida, humana, animal, e a minha própria vida. Me permiti também sentir raiva, ficar triste, ter dias ruins e tentar lidar com os sentimentos negativos por outros atalhos que não sejam comestíveis, afinal comer ou deixar de comer não vai resolver meus problemas, mas poder sentir coisas que não queria estar sentindo talvez seja o primeiro passo para isso.

Ao final do talkshow, eu afirmei que o veganismo tem sido minha cura, e a nutricionista Euritices Fernandes fez uma intervenção importante. Veganismo não é = cura. E cura, no caso de transtornos alimentares é = estado de atenção permanente. Mesmo assim, acredito, o veganismo pode ser um caminho de cura e tem sido, diariamente, o meu.

Para quem quiser aprofundar o assunto, recomendo a leitura do livro “Becoming Vegan”, da Brenda Davis, mais especificamente o capítulo dedicado aos transtornos alimentares. Infelizmente, o livro não tem tradução para português.

E para quem se identificou com minha história e acredita que o veganismo pode ser um caminho de cura, uma nutricionista especializada em alimentação vegetariana/vegana é fundamental. Fui acompanhada por uma nutricionista incrível em São Paulo, que inclusive me indicou a leitura do livro acima, a Natália Utikava. E para terminar, nós não somos a nossa doença/transtorno, ok? Se você está vivendo um período crítico, não desconfie da sua capacidade em se recuperar. E lembre-se, você não precisa passar por isso sozinha. Sei como pode ser difícil encontrar bons profissionais da saúde preparados para ajudar quem sofre de transtornos alimentares, mas não desista. Eu demorei muitos anos para achar, mas achei, me tratei, me recuperei e hoje trabalho com alimentação e inclusive ajudo pessoas que querem fazer a transição para uma alimentação sem nada de origem animal a se apropriarem da cozinha de casa como um lugar de auto-cuidado. Tudo isso para dizer que: se eu consegui, você também consegue, seja qual for o seu processo de cura.



Eu me tornei vegana pela minha saúde, mas não demorou muito tempo para eu começar a olhar para os animais de uma forma totalmente diferente. Vejo-os como meus companheiros de jornada, que merecem viver, assim como eu, essa vida que é a única que sabemos existir e que pulsa no coração de cada uma e um de nós. Essa compaixão alimenta, diariamente, um amor enorme por mim mesma e pela minha própria existência e ressignificou a relação que tenho com meu corpo e meu ideal do que é sucesso e beleza. Não sei se conseguiria sustentar esse lugar de reconciliação não fosse o veganismo.

Ahhh faltou dizer algo importante: o programa vai ao ar na quinta-feira dia 10 de Outubro, das 17h às 19h na RTP África. Nos vemos por lá?

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